Da lata de biscoito à epopeia eslava: o pioneirismo publicitário de Alfons Mucha

Frequentemente vemos artistas, geralmente jovens, mas alguns rodados também, se queixando dos trabalhos comerciais que precisam fazer para sobreviver. Alguns dizem que o mundo corporativo acaba divergindo com suas ideias, que deveriam estar sendo empregadas para produzir o bem maior que é a arte, pura e simples. E é aí que entra o brilhante papel de Alfons Mucha, o pai da Art Nouveau.

Mucha nasceu em 1860, em uma cidadezinha minúscula perto de Brno, na Morávia. Na época era parte do Império Austro-Húngaro, hoje é República Tcheca. Filho de funcionário público, de etnia eslava, Mucha sempre mostrou talento para as artes. Ainda jovem conseguiu apoio de um mecenas e foi estudar no grande centro artístico da época: Paris.

Depois de algum tempo estudando, com vinte e poucos anos, o patrocínio foi cortado. Mas Mucha permaneceu na cidade-luz. Morava em uma pensão de artistas, cuja dona frequentemente aceitava pinturas como pagamento do aluguel (uma espécie de pix-ture?). Mais tarde, dividiu um estúdio com Gaugin, antes que ele fosse pintar no Taiti. E assim Mucha foi se virando, pagando as contas como dava, fazendo ilustrações para revistas, muitas vezes folhetins novelescos, igual a tantos artistas de hoje em dia, até que veio um golpe de sorte. E, como dizem, sorte é o encontro da preparação com a oportunidade.

Havia em Paris, no final do século XIX, uma atriz bastante famosa, chamada Sarah Bernhardt. Em outubro de 1894 ela estreou, com sucesso, a peça “Gismonda” no Théâtre de la Renaissance, numa temporada que deveria ir apenas até o fim do ano. Sarah, porém, decidiu continuar com a peça no ano novo, logo depois das festas.

Ela então ligou para Maurice de Brunhoff, o gerente da gráfica que fazia os cartazes de suas peças, e informou que precisava criar, produzir e imprimir novos cartazes até 1º de janeiro. Não pediu, nem perguntou. Apenas informou. Era 26 de dezembro.

Como se sabe, em 1894 não havia gráficas rápidas, computadores ou aplicativos de arte. Sequer havia fotografia. Tudo era feito à mão, por artistas que trabalhavam para os editores gráficos. E todos os artistas do senhor Brunhoff estavam de folga, aproveitando as festas de fim de ano.

Brunhoff olhou para o lado e viu Alfons Mucha sentado, fazendo um bico de revisão de materiais. E a oportunidade encontrou a preparação.

Encarregado do trabalho por pura falta de opções, Mucha resolveu fazer algo diferente e, em vez utilizar os tons vibrantes que se costumava empregar nos cartazes, ele preferiu tons pastéis, mais suaves, e aplicou um delicado desenho floral na imagem de Sarah, como uma coroa. Também simplificou o fundo (talvez por falta de tempo) e colocou como texto apenas o nome da peça, da atriz e do teatro.

Naquele instante, nasceu a Art Nouveau.

O cartaz de “Gismonda” fez tanto sucesso que Sarah fez um contrato de seis anos com Mucha. Outro grande editor da época também contratou o artista e pagou um generoso salário para ter a exclusividade na publicação de suas obras que, a esta altura, eram a coqueluche da virada do século. Os desenhos de linhas suaves, com diversos elementos florais, tons pastéis e molduras decorativas eram uma ruptura com a aborrecida arte clássica e a perfeita materialização do sentimento de mudança da Belle Époque.

Além dos cartazes, Mucha aplicou o estilo recém-criado na publicidade de diversos outros produtos como chocolates, papinha de bebê, cigarros, champanhe e sabonete. Seus desenhos estampavam até latas de biscoito. Nessa época, a ilustração publicitária ganhou fama e forma, mas desde muito antes os artistas já se ocupavam de simples objetos, usando, por exemplo, o baralho de 52 cartas como uma espécie de “tela” para criar obras de arte. Mucha, porém, levou a ilustração em objetos a um nível sem precedentes até então. Mas a pergunta que fica é: Mucha se incomodava de usar a sua arte para a publicidade? Ou ele gostava de ilustrar cartazes de sabonete?

Anúncio criado por Mucha para a bebida Becherovka

Ao que consta, nem uma coisa, nem outra. Mucha encarava a arte publicitária como um trabalho que poderia levá-lo (e de fato levou) a fazer o que realmente queria. Arte épica.

Desde o início de sua carreira, ele sonhava em ser um pintor de imagens heroicas e cenas grandiosas, que contassem histórias impressionantes a quem as visse. Murcha teve algumas oportunidades em Paris, como na feira mundial de 1900, mas ele queria mais. Não só contar a história, mas fazer parte dela.

Em 1910, Mucha voltou para sua terra natal e começou a participar do movimento nacionalista que, em 1918, culminou no nascimento da Tchecoslováquia. Consagrado pelo sucesso em Paris, e amparado pelo dinheiro que ganhou com a publicidade, ele dedicou dez anos para realizar aquele que é considerado seu maior trabalho: a Epopeia Eslava, um conjunto de telas enormes, de seis metros por oito, que contam a história dos povos eslavos, com ênfase especial na sua etnia tcheca.

Outras contribuições para seu país incluem o desenho das primeiras cédulas da coroa tchecoslovaca, os primeiros selos do país e um vitral na Catedral de São Vito em estilo Art Nouveau, é claro. A arte aplicada à publicidade pode não ser gloriosa. Latas de biscoito dificilmente são. Mas ela pode, sim, ser a oportunidade que falta para a preparação de jovens artistas. Com talento e um pouco de sorte, eles também podem acabar criando uma nova Arte Nouveau.

Foto: Isco/Unsplash